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Entrevista especial com Joana de Vilhena Novaes
 
Um corpo que é símbolo de status, no qual a roupa usada é nada mais do que um acessório. E quanto mais malhado, “formatado” esse corpo está, por menos roupa será recoberto. No Brasil, não basta ser magra. A mulher tem que ser sarada, definida, bronzeada, sensual. Mais do que boa mãe, profissional competente e esposa cuidadosa, a mulher tem que enfrentar o “quarto turno” da academia, correndo atrás de um corpo quase sempre inatingível. Esse não pode ser o padrão de uma mulher bem sucedida, afirma a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. “O maior algoz da mulher é ela mesma, que vive buscando a aprovação de outras mulheres”. Para a pesquisadora, é preciso pensar em outro modelo de mulher bem sucedida, porque o atual “está levando as pessoas a um adoecimento extremo”. Temos que pensar numa mulher que comporte falhas, que não criminalize seu corpo por fugir aos padrões e que aproveite momentos como a maternidade, sem querer voltar às pressas à forma anterior. “É complicado resumir a mulher a apenas seu corpo”, assinalou. Na entrevista a seguir Joana comenta, ainda, a relação muito mais liberta, prazerosa e lúdica que as mulheres de classes baixas têm com seus corpos. Elas não ocultam suas imperfeições, e têm “uma sexualidade que é vivida de uma maneira muito mais plena” em relação às mulheres das classes média e alta.

Joana de Vilhena Novaes é graduada em Psicologia pela PUC-Rio, com mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pela mesma universidade. É pós-doutoranda em Clínica Médica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-doutora em Psicologia Social pela mesma instituição. Atualmente, coordena o Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio, onde pesquisa "O corpo nas camadas populares" e, ainda, faz atendimento psicológico à comunidade de baixa renda. É pesquisadora do Laboratório de Pesquisas Clínica e Experimental em Biologia Vascular (Bio-Vasc/UERJ) e pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine -Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora. Escreveu O intolerável peso da feiúra. Sobre as mulheres e seus corpos (Rio de Janeiro: PUC/Garamond, 2006). Proximamente publicará o livro Com Que Corpo Eu Vou? Sociabilidade e Usos do Corpo em Camadas Populares.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a simbologia do corpo feminino brasileiro?

Joana de Vilhena Novaes - Acredito que há uma série de representações interessantes em torno do corpo feminino, sobretudo o brasileiro, bastante sexualizado. A imagem que é “vendida” no exterior sobre as brasileiras é de corpos desnudos, com uma sexualidade mais liberta. São aqueles corpos esculturais que desfilam pela praia de Copacabana, com suas bundas maravilhosas. Esse é o cartão postal, a imagem que o Brasil vende lá fora. São corpos supersexuados, muito bem formatados. Isso quer dizer alguma coisa. Se viajarmos cinco séculos para trás, encontraremos as índias nuas. Havia todo um deslumbramento, o chamado do exótico, quase que uma etnografia feita pelos portugueses quando chegaram aqui, e o estranhamento do estrangeiro quanto a essa relação brasileira, dos nativos, com o próprio corpo. Há, assim, razões históricas e apropriações mais contemporâneas sobre essas representações do corpo que o Brasil foi forjando ao longo desses séculos.

IHU On-Line – Como se construiu, ao longo do tempo, a obsessão nacional pelo corpo perfeito? Quais as origens do corpo se tornar objeto de culto e consumo?

Joana de Vilhena Novaes - Isso não tem nada a ver com a imagem das índias, com uma sexualidade liberta, ou um corpo que é exposto. O que ficou de resquício desse período é a ideia de um corpo que é roupa. A brasileira tem um uso muito específico do corpo, ao contrário da europeia e da americana, que usam a roupa para esconder e disfarçar, envelopar seu corpo. O código vestimentar é muito diferente num corpo de classe. A brasileira usa o corpo como símbolo de status. A roupa é meramente um acessório. Quanto melhor esse corpo está formatado, menos roupa precisará. Essa simbologia do culto ao corpo ser tão significativa no Brasil no sentido das mulheres brasileiras serem consideradas aquelas com os corpos mais bem esculpidos do mundo, é alguma coisa que sinaliza o investimento brutal nesse corpo como capital. É um investimento de tempo, dinheiro. Como em todo projeto dessa monta, está implícita uma série de sacrifícios e renúncias de tempo e dinheiro, ou seja, as qualidades estéticas que esse corpo apresenta para ser exposto, funcionam quase como um sistema de meritocracia.

Quanto mais formatado este corpo estiver, a sua recompensa a toda essa disciplina é expô-lo da melhor maneira possível. Isso é uma característica que define a cultura que vivemos, mas também está em consonância com valores que nos são contemporâneos. No Brasil, é como se isso fosse levado ao paroxismo, ao extremo. Que valores são esses? Em última análise, esses valores apontam para um fenômeno social mais amplo que é a moralização da beleza. É você sinalizar ou reconhecer numa cultura como a nossa, de corpolatria, que cada desvio estético, (na medida em que se cuidar passou a ser um dever, e não um direito), passa a ser criminalizado. Cada transgressão, gordura e sinal de envelhecimento que não são devidamente disfarçados, o sujeito passa a ser criminalizado e culpabilizado.

IHU On-Line – O que diferencia o comportamento das mulheres com sobrepeso e mulheres magras, ou mulheres de classe baixa e alta em relação diferente com o corpo?

Joana de Vilhena Novaes - No Brasil, não basta ser magro. O corpo tem especificidades dentro desse fenômeno mundial mais amplo de uma cultura do consumo e a cultura do espetáculo, que não é própria do Brasil. Aqui, esses contornos são mais específicos: mais do que magro, tem que ser malhado, definido, e, acima de tudo, bronzeado, sensual. Não basta ser um corpo magro, flácido, descarnado das modelos. É preciso ter um corpo atlético, de alta performance, cada um deve descobrir o atleta que tem dentro de si, tirando o máximo de aproveitamento do corpo. Isso é muito próprio dessa cultura de alta produtividade, na qual o sujeito, em última análise, e o culto ao corpo, têm a ver com os cuidados de si, com um bem gerenciar seu corpo de forma competente.

A leitura que é feita do sujeito no imaginário social, já que o corpo é o cartão de visitas, é algo que transcende a aparência em si. A aparência fala sobre o seu caráter. Se você souber gerenciar bem seu corpo, certamente a leitura que é feita do seu caráter é que você é um sujeito que sabe bem viver, um bom profissional, alguém que não é desleixado e sabe administrar sua vida de forma competente. As pessoas intuem que, além do caráter da pessoa e suas características, pessoas de boa aparência são bem sucedidas em outros aspectos de sua vida. No caso da mulher, avalia-se se ela é boa esposa, boa mãe, boa profissional. Quando se pergunta para o público quais são as mulheres que são consideradas ícones, referências para admiração, via de regra tratam-se de mulheres muito bonitas, além de inegavelmente competentes. Essas mulheres, dentro de uma rotina extenuante de atividades, conseguem cuidar do corpo. Tem que ser magra, boa mulher, boa esposa, bronzeada, saudável e os “ês” não param por aí.

IHU On-Line – Por que a mulher pobre tem uma relação mais livre com seu corpo?

Joana de Vilhena Novaes - Esse é o tema da minha pesquisa de pós-doutorado na UERJ. Nela, comparo o discurso de mulheres de classe média-alta e os usos que elas fazem de seu corpo, com o discurso das mulheres de classes populares. Faço uma distinção, um estudo comparativo. Procuro compreender como, embora lançando mão das mesmas práticas corporais (as mulheres pobres também malham, também estão nas filas dos hospitais públicos para fazer cirurgia plástica de cunho estético, também fazem dieta e cirurgia bariátrica) elas têm um uso muito diferenciado e significativo. Nesse sentido, falo que elas têm uma relação mais liberta, prazerosa e lúdica, menos persecutória, do corpo. Isso não tem a ver com ter uma visão acrítica do corpo, caso contrário, elas não estariam malhando nas academias da favela e fazendo lipoaspiração.

Discursos diferentes

Se você perguntar às mulheres das classes mais abastadas porque elas malham e querem emagrecer, usarão um discurso sofisticado, mas individualista, dizendo que o fazem para elas mesmas. Esse discurso aponta para uma insatisfação com a imagem corporal em relação mais tensa com o espelho. Mas isso nunca é justificado como querer ser um objeto de desejo mais atraente. Pelo menos esse não é um discurso manifesto. No caso das mulheres das favelas, elas dizem claramente que essas intervenções no corpo são para “ficar gostosas”, porque querem capturar o olhar do marido, porque querem passar pelas quebradas da comunidade e serem chamadas de gostosas, ou querem “passar o rodo geral no baile funk”. Isso aponta para uma sexualidade que é vivida de uma maneira muito mais plena, porque não significa desconsiderar ou perceber que precisa emagrecer, por exemplo. Falo isso porque esse foi o mote que me fez ir a campo e investigar como essas mulheres usavam o próprio corpo.

Prisioneiras do corpo

Muitas vezes se observa nas classes populares, e isso não é uma prerrogativa só do Rio de Janeiro, que as mulheres acima do peso colocam short, piercing, usam top e não disfarçam seu corpo. Elas o expõem, apesar de toda camada de gordura que possa existir, ao contrário do discurso do que observamos em termos de códigos vestimentares de uma mulher de classe média alta. Esta, se estiver acima do peso, não irá se expor. Se tiver umas gordurinhas, usará uma bata mais solta, subirá um pouco a calça, ou deixará o biquíni de lado, preferindo o maiô. Essas mulheres podem até deixar de frequentar determinados pontos da praia, onde só vai gente sarada. A mulher pobre, não.

Não devemos, no entanto, cair na análise simplista ou equivocada de achar que as mulheres das comunidades carentes não se percebem como cheinhas, gordinhas e estão sempre safisteitas com o corpo que têm. Não, pelo contrário. Elas têm acesso à informação, leem revistas, veem a mesma novela que as mulheres de classe abastada assistem. O discurso ao culto ao corpo é democrático. A diferença é que elas não estão aprisionadas nesse corpo. Elas sabem que precisam perder peso, o que é uma dieta balanceada, ao contrário de todos os estudos clássicos sobre o corpo nas classes populares, que apontavam para uma população que estaria alienada do discurso médico que as faria comer e viver melhor. A mulher de classe baixa sabe o que deve comer para emagrecer. Conversando com essas mulheres, seja nos postos de saúde ou nas próprias comunidades, elas garantem saber o que é uma alimentação balanceada. Entretanto, esse tipo de comida custa muito caro. Queijo “cottage”, por exemplo, não está na cesta básica, dizem elas.

Corpo de classe

O corpo magro, esbelto, é um corpo de classe. Uma geleia diet comparada à geleia comum é muitíssimo mais cara. O dinheiro para alcançar um projeto dessa monta é brutal. É por isso que é preciso pesquisar, no imaginário social, as raízes históricas desse corpo e da relação com a comida. A disciplina e a privação são valores máximos nas classes médias e altas: você está louca para comer aquele brigadeiro, ou um bife à parmeggiana, mas controla e mantém o seu investimento em relação ao corpo. Nas classes populares, o que se observa bastante é que a questão da privação está associada à pobreza, e a gordura à prosperidade e fartura. Já ouvi de uma mulher da favela que não adianta ficar tomando só sopinha e comendo biscoito Cream Cracker, porque aí vão achar que a pessoa está na miséria.

IHU On-Line – Pode-se falar, ainda, em ditadura da beleza? Por quê? Como as modelos e o uso do photoshop nas revistas contribuem para isso? Por outro lado, a senhora diz que apesar de procurar fazer ginástica e se inscrever em hospitais públicos para cirurgias de redução de estômago, as mulheres das classes baixas não reverenciam os rígidos padrões estéticos nacionais, preferindo a exuberância de Ivete Sangalo ao corpo magro de Gisele Bündchen. O perfil de beleza entre as mulheres está mudando?

Joana de Vilhena Novaes - Ao longo da história, há variações estéticas. Evidentemente, tamanha tecnologia a serviço da formatação da imagem cria uma expectativa nas pessoas que é perigosa. Acho que, quanto mais a pessoa vai subindo na pirâmide social, mais almeja um corpo mais descarnado. Você precisa ter um corpo mais curvilíneo, e não estar tão atento ao photoshop. Falo muito na questão do corpo de classe porque o corpo sempre é de classe. Na Revolução Industrial ou no Renascimento, havia corpos que eram ferramenta, como nas classes populares. Não era um corpo voltado para o prazer, mas para o trabalho. Naquela época, os magros eram os pobres, que morriam de peste, de fome, e porque não tinham os aditivos e especiarias para conservar a comida. Gordos eram os membros do clero e da burguesia. Esse era um corpo para poucos. Se agora a obesidade é uma questão de saúde pública, com estatísticas assustadoras no sentido de apontar que as pessoas engordam exponencialmente, é claro que o ideal é um corpo emagrecido e que tenha acesso a uma nutricionista para fazer uma dieta balanceada, verificar percentual de gordura, com personal trainer a fim de formatá-lo devidamente. Some-se a isso recursos como as massagens, spas etc.

IHU On-Line – Tomando o dia 8 como data emblemática para pensar a situação das mulheres, qual é o grande desafio para as brasileiras hoje, a fim de manter sua identidade, papel e importância dentro das sociabilidades?

Joana de Vilhena Novaes - O maior algoz da mulher é ela mesma, que vive buscando a aprovação de outras mulheres. É uma sociabilidade muito diferente daquela dos homens. Fica o convite para as mulheres pensarem num outro modelo de mulher bem sucedida, porque o modelo atual está levando as pessoas a um adoecimento extremo. Quando falo num outro parâmetro de mulher bem sucedida, refiro-me a um tipo de mulher que não sofra esse acúmulo descomunal, insano e adoecido de tarefas, que com o feminismo só passaram a se acumular lado a lado. O culto ao corpo seria uma espécie de quarta jornada.
Gostaria que se pensasse num modelo de mulher que comporte falhas, sem essa criminalização do corpo. Hoje chega-se a criminalizar inclusive a maternidade. Por que as mulheres que acabaram de ter filhos tem que recuperar rapidamente a forma? É um desaviamento. É complicado resumir a mulher a apenas seu corpo. Que imagem é essa de mulher bem sucedida? Ela é inviável! As mulheres estão adoecendo por conta disso. A perfeição é um ideal inatingível.

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