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CALHAO: 'CNJ mudou Judiciário, mas precisa ser mais independente'

A lentidão da Justiça fere duplamente os direitos do cidadão e provoca um circulo vicioso que culmina com o aumento do número de processos nos tribunais. Essa é a síntese da análise do professor Ernani Calhao, titular da Faculdade de Direito da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso) e da pós-graduação da Faculdade de Direito da FGV, em São Paulo. “Esse estado de morosidade, de lentidão, de letargia do Judiciário é um fator de aumento de conflitos”. 

Candidato a uma vaga de representante da sociedade civil no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Calhao também é economista de formação e atua como assessor da presidência do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região). Nessa entrevista a Última Instância, ele exalta as iniciativas recentes do Conselho para o estabelecimento de metas para o Judiciário, a despeito da resistência de alguns tribunais. 

“A cultura da demanda, a cultura do litígio, a cultura do atraso continua e tem muita gente levando vantagem com isso. Muitas das resistências que nós encontramos às mudanças propostas pelo CNJ vêm de pessoas que, de certa forma, estão se valendo da miséria dos outros”, diz Calhao. 

No entanto, o professor é incisivo nas críticas à forma de indicação dos membros do Conselho, que, em sua visão, comprometem a independência do órgão de controle externo do Judiciário. “Há uma certa tendência de algumas pessoas de, ao assumir uma posição como essa [uma vaga no CNJ], não terem a atitude de contrariar certos posicionamentos, que são extremamente corporativos”, afirma.  

Leia a seguir a íntegra da entrevista com Ernani Calhao:  

Última Instância - Seu trabalho de pesquisa tem se concentrado na questão da celeridade no Judiciário. Justiça que tarda falha?  

Ernani Calhao – Falha. Por melhor que seja uma decisão, por mais bem feita que ela seja, se for tardia, ela está falhando porque quando ela retornar o direito daquele indivíduo ela pode ter perdido a relevância. Por isso o processo civil caminhou muito no sentido de conferir tutelas antecipadas, para a preservação desse direito. Na verdade a morosidade da Justiça provoca uma dupla violação: a primeira é a violação do direito de particular contra particular ou do próprio Estado contra o particular. A segunda é a demora, a falta de sanção, que leva ao aumento do índice de litigiosidade. Como os esquemas existentes para apaziguar conflitos —aqui me refiro a uma paz preventiva, não reativa— são lentos, falham, o violador se sente muito tranqüilo para transgredir a lei, porque ele sabe que a sanção vai demorar muito. É o predomínio e a prevalência do mais forte, uma situação que não pode ser admissível em qualquer Estado democrático. A Constituição diz que a Justiça tem que ser concedida em prazo razoável, um princípio que nós colocamos na Carta em 2004, mas sobre o qual ainda estamos fazendo ouvidos moucos.  

Última Instância - A causa dessa morosidade costuma ser atribuída a falta de recursos materiais e humanos. O maior problema do Judiciário está na falta de recursos ou na administração da Justiça?  

Ernani Calhao – Não é falta de recursos, porque recursos existem. O que ocorre é que o modelo de administração da Justiça que nós temos está superado pelo tempo. É preciso levar em conta que historicamente o acesso à Justiça sempre foi destinado a uma classe privilegiada. Mas com o passar do tempo houve um crescimento da percepção da sociedade de que a violação de direitos não pode ser tolerada e ela passa a buscar insistentemente respostas dentro do Poder Judiciário. Ele se tornou o último elo de coesão social, a última trincheira da população, já que houve uma perda de credibilidade muito grande do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Se o esquema de proteção social ao indivíduo falha e se esse indivíduo está mais consciente do seu direito ele bate à porta da Justiça. Só que ele encontra um Poder bastante antigo, excessivamente formal, e com uma visão que eu chamo de “sistema artesanal de solução de conflitos”. Um modelo próprio da aristocracia, com inúmeras formalidades, dezenas de carimbos. Até mesmo em termos comportamentais e de valores o Judiciário está muito próximo de um poder aristocrático, seja no modo de se vestir, com o uso das togas, seja no linguajar, no distanciamento com a população. A Justiça não pode mais dar-se a esse luxo, porque a demanda é tão alta que é preciso colocar em prática uma jurisdição de massa.  

Última Instância – O senhor defende que a virtualização dos processos não é suficiente para combater a lentidão processual. Por quê?  

Ernani Calhao – O que é um documento virtual? É simplesmente o ato de escanear o processo físico. Isso não é fazer informatização, com todo o respeito. Isso é colocar para dentro do computador a cópia do velho modelo de trabalho, que está superado. É preciso desenvolver um sistema que otimize todo o procedimento, porque a maior parte daqueles andamentos, que a lei infelizmente manteve para tentar assegurar alguns direitos de defesa, são absolutamente desnecessários. Você pode tomar parte da automação para evitar que esses procedimentos fiquem muito lentos. A jurisdição de massas é o caminho que nós temos para otimizar o processo, para simplificar as formas e para responder de forma mais rápida a esse número de demandas. 

Última Instância – O STJ tem liderado um movimento para promover a virtualização dos tribunais aliado a um novo sistema de tramitação dos processos. Seria esse o caminho?  

Ernani Calhao – O STJ é pioneiro nessa área e é um exemplo de sucesso, que deveria ser seguido por todos os tribunais. Isso se deve em grande medida a uma decisão muito lúcida que foi a terceirização do setor de informática da Corte. Quando um tribunal possui um quadro de profissionais de informática, os servidores acabam se acomodando naquela estrutura de cargos, funções, procedimentos e não se atualizam. Grande parte do atraso que existe no desenvolvimento de tecnologia de ponta do Judiciário deve-se às estruturas burocráticas nos departamentos de tecnologia da informação. Essas estruturas nada mais fizeram do que incutir na cabeça dos administradores a necessidade de sempre comprar novos equipamentos, em vez de procurar soluções para melhorar o fluxo de trabalho.  

Última Instância – Como avalia a atuação recente do CNJ?  

Ernani Calhao – Nos últimos anos a mudança que o Judiciário teve foi fantástica. A atuação do Conselho Nacional de Justiça mudou a cara do Poder Judiciário brasileiro. Começou a cortar na própria carne, a partir de um fundamento democrático: o controle externo. No entanto, a forma como o Legislativo tem conduzido algumas indicações para o Conselho faz com que esse controle externo seja muito tímido. Há uma certa tendência de algumas pessoas de, ao assumir uma posição como essa, não terem a atitude de contrariar certos posicionamentos, que são extremamente corporativos.  

Última Instância – Cite um exemplo.  

Ernani Calhao – Por exemplo, achei absolutamente equivocada a decisão que autorizou todos os juízes de segundo grau a terem um carro oficial com motorista. Não há explicação plausível para que um magistrado, que, lato sensu, é um servidor público como outro qualquer, tenha carro na porta para levar e buscar. A autorização que existe na lei é para cargo de representação, como presidente, vice-presidente e corregedor-geral. Nem digo que eles não merecessem, se nós não tivéssemos problemas maiores para investir. Qual é o papel do controle externo em um caso como esse? Atuar de forma independente. A função do controle externo exige que prevaleça a pluralidade de ideias no Conselho. Lá existem representantes da magistratura federal, da magistratura estadual, da magistratura do trabalho, do Ministério Público, da advocacia e, portanto, a vaga da sociedade civil teria que ser ocupada por cientistas políticos, por economistas, por jornalistas, não por advogados, porque assim se garante a visão plural. 

Última Instância – Como avalia as declarações do ministro Gilmar Mendes, que chegou a dizer que a morosidade do Judiciário é um mito, e que a lentidão estaria concentrada apenas em alguns tribunais?  

Ernani Calhao – O ministro tem absoluta razão. Existem tribunais extremamente rápidos, bem equipados, mas que, no entanto, estão em locais com baixa densidade populacional. Nesses locais, a tendência é melhorar cada vez mais, porque o tribunal atua. É o que se chama princípio virtuoso da jurisdição. Nas grandes metrópoles ocorre o inverso. Quanto mais lenta a Justiça, mais violação de direitos; quanto mais violação, mais processos. O ministro está correto e ele percebeu que esse é o momento de incentivar as boas práticas e experiências, que muitas vezes não são observadas por causa de uma certa soberba dos grandes tribunais. 

Última Instância – Como acabar com a cultura da burocracia? O CNJ pode liderar esse processo?  

Ernani Calhao – Deve. O Poder Judiciário sempre foi um poder que não se definia a partir de uma política pública nacional, porque cada um dos 91 tribunais seguia o seu próprio rumo. O CNJ impôs uma política pública, estabelecendo uma série de prioridades para os tribunais, dentre elas o combate à morosidade e o planejamento estratégico. Os atuais atos do Conselho foram muito corajosos, porque a administração dos tribunais era literalmente aristocrática. Um presidente assumia o tribunal sem nenhum compromisso assumido e ninguém o cobrava. O princípio da continuidade administrativa nunca foi respeitado, um presidente substituía o outro e mudava tudo, com um traço personalista. Juiz deve ter liberdade de convicção no processo, não na administração, porque a administração pública deve ser impessoal. Fonte: Sítio ultimainstancia.com.br

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